A minha avó tem 96 anos. O cabelo há muito que perdeu a cor e a vaidade. A minha avó nasceu em terras de raia alentejana e da sua beleza falam-me de vez em quando. “A rainha dos bailes”, chamava-lhe a tia Maria, a irmã mais velha, “não faltava a um, e se não a deixavam ir, pulava a janela!”. E, acredito. Filha de republicano, casada com um anarquista, a minha avô foi uma mulher de armas. Durante a Guerra Civil de Espanha, prenderam-lhe o marido mas não lhe dobraram a vontade. Depois foi a Pide que lhe levou o sobrinho para a António Maria Cardoso, lhe espantou filha e netos para terras de África, e manteve o resto da família em sobressalto. Nunca a espinha da minha avó se dobrou. Viúva aos 40 anos, arregaçou as mangas e fez da vida o futuro da filha única. Figura miúda, esguia, manteve as rédeas da família e do destino sempre curtas. E que não lhe falassem de mais homens “…para ganhar o pão, eu chego bem.” Não recordo de alguma vez ouvir a minha avó falar do tempo de antes, ou de lhe escutar remorsos ou lamentos. Mas, lembro-me de um desabafo que ainda hoje me faz o coração pequenino “…nunca fui ao jardim Zoológico”, e eu já não fui a tempo de lhe mostrar os bichos que só viu nas estampas ou na tv.
A minha avó cegou. É uma avó pequenina, dobrada pelos anos, com umas mãos esguias sulcadas de veias. No colo depositamos-lhe os bisnetos bebés que ela embala com lengalengas cantadas. E agora, pergunta muitas vezes porque é que ainda cá está. E nada a consola. Nem os beijos que lhe damos, nem os abraços dos meninos. Nada. Agora já não vê o céu nem a Serra de São Mamede, não pode regar as laranjeiras do jardim, nem sente a “brazia” das tardes Alentejanas. A minha avó está a despedir-se da vida.