Rascunhos (XV)

 Se eu não estivesse tão cansada sonhava. Havia de sonhar com dias de sol e meninos felizes. Com o barulho do mar e a sombra de um cais açoriano. Com o sabor do leite quente com mel, com o toque ausente de mãos, com a espiral de fumo do cigarro tardio. E talvez sonhasse com dias antigos, com fotografias a preto e branco, com o cheiro fresco do capim molhado e com o sabor da cana de açúcar acabada de cortar. Sonharia com o que fui, de pernas magras e feridas nos joelhos, com os olhos de um negro enorme, com a mão do meu pai a fazer-me festas nos cabelos, com as corridas até ao fim da rua e um pôr de sol em sangue. Com a árvore mais alta que anunciava o início do mato e o mercado gigantesco e a mesquita e a igreja, com o som do batuque ao cair do dia e a chegada anual dos gafanhotos. Ou então, o meu sonho dissolver-se-ia nas minhas filhas acabadas de nascer, no seu grito primordial, no sangue, suor e lágrimas, na lágrima, única, que anunciava ao mundo, o princípio e o fim. E nas mãos e olhos de quem lhes deu a outra metade, no primeiro toque e no cheiro acre das recém-nascidas, no abraço da parteira, na luz fria e no sorriso do médico.
Se eu não estivesse cansada ia lembrar-me da mãe, filha, amante, que gostaria de ser, e havia de estranhar esta que agora me entrou na pele.