Laurinda

Laurinda queria ser escritora, mas não tinha tempo. As horas esvaíam-se pelos dedos, transformadas em gráficos, powerpoints e sopas passadas que a criançada não gostava de bocados no caldo quente nocturno. Não tinha tempo para escrever, mas conseguia espremer os minutos para, diariamente, fazer uma sopa de legumes que alimentava a prole e lhe abafava a voz da consciência que repetia, a espaços, “má mãe”. E consolava-se com aquela voz miúda que apesar de tudo lhe dava o consolo de não se saber sozinha dentro de si. Laurinda não tinha tempo, e tinha perdido há muito o sonho de ser escritora. No dia em que voluntariamente se vestira de branco e se arrastara, de cauda e véu, pela escadaria dos Mártires, sabia, que a tinta da caneta permanente iria secar. Que o Francisco há muito deixara claro “que mulher minha, veste bem, fala bem mas não dá nas vistas!”. Escritora não seria certamente o destino que lhe estava…destinado. E depois cresceu-lhe o ventre. Uma, duas, três vezes a intervalos regulares de dois anos, não deixando espaço ao sonho ou sequer à angústia de saber perdidas as palavras que trazia penduradas nos fios dos dias. Laurinda queria ser escritora mas faltava-lhe o sonho, a força e o sono. Acordava todos os dias com uma voz miúda que repetia a intervalos certos, “má mãe”, recordando palavras duras e o assado que tinha queimado na noite anterior. Acordava e aquecia leites e biberons, fazia lanches, e dava beijos apressados antes de ser engolida pela escadaria do metro, antecipando a sangria das horas que iria transformar em gráficos e powerpoints.  
Nota: Resultado do desafio de escrita lançado pela CC :)..vamos a outra rodada?

Um pensamento sobre “Laurinda

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