Era uma manhã como tantas outras. Mas eu acordei diferente. Não sei bem o que sentia (ainda hoje não o consigo explicar), mas sabia que alguma coisa ia acontecer, só não sabia o quê, quando ou com quem.
Fiz a rotina do costume: levantei-me, dei de comer à gata, lavei a cara e os dentes, tomei o pequeno-almoço ao som do noticiário na TSF e vesti-me.
Estava um dia triste, cinzento. As férias já tinham terminado há alguns meses, deixando saudades do calor do sol na pele. Vesti uma blusa branca e uma saia cinzenta. Olhei-me no espelho e não gostei do que vi. Optei pelo impermeável vermelho para enfrentar aquele dia de Inverno e me emprestar/contagiar com a alegria, atrevimento e coragem da cor.
Olhei o relógio e vi que estava em cima da hora, pelo que me apressei até à paragem de autocarro. Sentei-me ao pé de uma senhora que ocupava lugar e meio e trazia a alcofa cheia de laranjas.
“Desculpe” – pediu a senhora, enquanto eu me espremia para passar para o lugar da janela.
“Desculpe” – pedi eu quando fiz rebolar umas quantas laranjas pelo chão.
A viagem para a fábrica demorava 25 minutos certos, pelo que tirei o livro da pasta e retomei a leitura do capítulo que tinha abandonado ontem à noite, quando adormeci.
Enquanto procuro a página, ouço a conversa de duas amigas, sentadas no banco atrás do meu.
“Foi corajosa. Por ter deixado tudo para trás e…
“Coragem? Chamas a isto coragem? Estás doida? A Suzie é uma cobarde, isso sim… e egoísta!”
Também eu gostava de ganhar coragem e fugir desta vida triste e previsível. Todos os dias completo o mesmo ritual e, por mais que tente e me esforce, não consigo improvisar e sair do planeado. Bem tento, mas nunca consigo fazer alguma coisa diferente do que fiz nos últimos anos. Por segurança, dizia o meu pai… talvez, concedo. No entanto, gostava de ser diferente do que sou, ser arrojada e atrevida. Mas o mais próximo que consegui até hoje foi comprar e vestir este impermeável vermelho.
Abro o livro “Nunca é tarde demais”, um título enganador. À primeira vista poderia pensar-se que é sobre amor, paixão ou doença, morte, mas é uma história policial e de espionagem. O meu estilo favorito. Talvez por ser tão diferente da minha rotina diária. As aventuras da heroína fazem-me sonhar e vibrar! E se eu fosse como ela? Destemida, sensual, perigosa, misteriosa… mas não. Sou apenas a Anabela, secretária de Direcção de uma Fábrica de Têxteis. Mais enfadonho e previsível é difícil.
Embrenhei-me de tal maneira na leitura e nos pensamentos, como já vem sendo hábito, que perco a noção do tempo e do espaço. Quando dou por mim, estou a olhar para uma rua que desconheço. Olho para as horas… não pode ser… passou mais de 45 minutos desde que entrei no autocarro. Este continua a andar, mas os passageiros, em especial a senhora gorda que estava ao meu lado, desapareceram. Não é possível. Estava tão apertada que daria pela sua saída…
Olho pela janela, e não reconheço as lojas, os edifícios, o tipo de pessoas que passa na rua. Que se passa?
Levanto-me e toco para sair na próxima paragem.
O condutor abre a porta “Bom dia! Tenha um bom dia!” e sorri de forma agradável. Desço para o passeio e vejo-me envolvida num mar de pessoas que desce e sobe a rua.
“Bom dia”
“Olá, bom dia”
“Bom dia, bonita gabardina!”
Ouço repetidamente, enquanto pessoas que nunca vi, me cumprimentam.
Olho em redor espantada! Mas onde estou? E porque é que estas pessoas são tão simpáticas comigo?
Não sei bem o motivo, mas em vez de apanhar o autocarro de volta, resolvo percorrer as ruas daquele lugar e desfrutar do caloroso sol que se espreguiça no céu.
Gosto mesmo deste lugar! Pela primeira vez na vida, sinto-me bem comigo mesma! As horas passam e, à medida que vou percorrendo as ruas, anseio que o tempo pare para sempre.
Não sei onde estou, mas sinto-me bem. Quando acordei hoje de manhã, tudo estava cinzento, mas agora o sol brilha… eu sabia que algo ia acontecer.
E se??? Será que posso ousar? Será que devo ponderar a hipótese? E se…? Sim, nada me prende!
Perdi-me, é verdade! Mas acabei por me encontrar neste lugar insólito, onde o sol está sempre brilhante, onde as pessoas são simpáticas e onde gostam da minha gabardina vermelha.
Conto adaptado do que escrevi no curso Oficina do Conto, na Escrever Escrever