Riscos e Rabiscos


Pepe amava Lupe mais que tudo na vida e no mundo.
Mas o que mais gostava era de passar as mãos pelo seu corpo, acariciando cada curva.
Os seus vestidos justos, com uma fila interminável de botões à frente eram uma perdição para ele.
E o seu baton… cheirava a pêssego e sabia a paixão.
Mais que beijar os seus lábios, o que mais gostava era de os lamber, de passar a língua devagarinho no seu contorno e entreabri-los com os dedos.
Mas quando Lupe estava a cozinhar, nada a demovia. Nem sequer a excitação visível de Pepe.
A voz de Lupe ficava rouca e profunda, mas fria e profissional, mantendo-o à distância… até a refeição estar concluída…
O toque dos seus lábios carnudos selou o acontecimento.
A camisa de Pepe estava encharcada em suor.
O vestido de Lupe ficou húmido e o odor enjoativo deixou-a nauseada.
Em contraste, a casa cheirava a rosmaninho e aos seus cozinhados.
Pepe sentou-se e saboreou o cozido.
Queimou-se e apanhou o guardanapo para apertar contra os lábios doridos e, de seguida, sorveu um gole de vinho tinto.
Pegou na perna de vitelo com as mãos e sentiu a gordura a escorrer pelos dedos e pelos beiços enquanto a trincava e saboreava o seu sabor.
Era o seu prato favorito e, sempre que o comia, sabia que o dia corria melhor.
Uma boa foda e um prato de cozido era a receita para uma enorme vontade de trabalhar…

Riscos e Rabiscos


Sou um copo.
Um copo de vidro azul.
Não sou transparente nem liso. Sou rugoso.
Estava na loja junto com os meus irmãos há quase um mês.
Mas de repente, senti uns olhos castanhos pousados em mim por um pouco mais que um instante.
Percebi o interesse e endireitei.me, fazendo sinal aos meus irmãos.
“Atenção pessoal, aquela está a olhar para nós. Toca a fazer boa figura.”
Senti as mãos na minha barriga – “Ui” – encolhi-me!
“Cuidado que ela tem as mãos frias!”
Vi que falava com outra pessoa.
Não sei falar a língua dos humanos, pelo que não percebi o que diziam, no entanto, sou bom observador e perspicaz no que diz respeito ao não verbal.
De modo que me apercebi do seu interesse na nossa família.
E essa percepção foi rapidamente confirmada quando nos começou a colocar no cesto.
“Toma!” disse eu para a família vermelha que todos os dias nos massacravam por serem os preferidos.
“Hoje é o nosso dia.”, pensei, enquanto aguardava ansiosamente, já no cesto, pela selecção dos meus irmãos.
“Cuidado com essas mãozinhas…” – tive que dizer aos meus irmãos, pois éramos colocados num sitio escuro e frio, sem protecção contra os choques – “Este saco é demasiado grande para nós os seis!”
A viagem para casa foi atribulada e nós seis estávamos com medo de não chegar inteiros, tais os safanões e abanões que o saco sofria e nos constantes embates e choques.
“Se tivessem escolhido a rosa, já estava em fanicos!”, pensava eu, enquanto tentava bater ao de leve num, e me desviava do outro.
Finalmente chegámos.
Os choques pararam e ainda mal nos tínhamos recomposto, já éramos enfiados no sitio mais escuro e húmido onde jamais estive.
Um horror!
Sem fuga possível, fomos torpedeados com água quentíssima, detergente e abrilhantador durante horas a fio.
Não contei o tempo, preocupado que estava em cuspir o detergente e evitar que me entrasse nos olhos, mas parece que nunca mais acabava.
Já me tinham contado como era, mas vivê-lo era bem pior!
Foi a pior experiência por que passei, mas no fim estava a brilhar.
Foi então que conheci os restantes hóspedes do armário: meia dúzia de pratos azuis e brancos, altivos e pouco falantes; meia dúzia de canecas multicolores super divertidas e sempre prontas para o disparate; seis gamelas de sopa super simpáticas que nos apresentaram aos restantes membros, pois tinham sido os primeiros habitantes da prateleira.
Após as apresentações iniciais, mais demoradas pelo facto das canecas quererem saber tudo sobre nós e quererem contar tudo sobre elas, o sono atacou-nos.
Tinha sido um dia em cheio!
O cansaço acabou por nos vencer, deixando-nos com um pensamento: “hoje começa uma nova vida!”

Riscos e Rabiscos


Comecei muitas vezes uma carta que nunca cheguei a mandar porque a altura certa tinha passado.
Com o tempo, as razões que me levaram a escrevê-la, diluíram-se.
Já nem eu própria sei porque é que a queria mandar.
Mudámos.
De casa, de emprego, de convicções e de sentimentos.
Já não sou a mesma de há um ano atrás.
O que era importante, já não o é agora.
Tudo o que te queria dizer parece, agora, insano.
Nem eu compreendo aquilo que escrevi.
Quem era? O que queria? E tu?
Talvez um dia te leia a carta.
E aí, talvez tu consigas compreender o que me ia na alma.
Sempre o conseguiste.
Por isso te amo.

Nunca vi o mar!


João e Rita são amigos de infância.
Nasceram e cresceram numa aldeia de interior, onde a natureza abunda, mas poucas oportunidades aliciantes surgem aos mais novos.
O seu maior sonho era ver o mar.
Desde a mais tenra idade que ambos tinham longas discussões sobre como seria ouvir as ondas, sentir a areia por entre os dedos, provar o sabor da água, sentir a sua imensidão, ver as suas cores, cheirar a maresia.
A que saberia? Que som faria? Como seriam as ondas? E a espuma do mar?
Liam avidamente todos os livros que falassem dele, na Biblioteca local.
E, no Verão, “massacravam” os primos, que vinham de férias, com perguntas.
A imaginação permitia criar muitas imagens, mas… não podiam confirmar ou negar algumas delas.
Assim, no final de um Verão particularmente quente, quando os primos foram embora, decidiram que iam começar a fazer planos para ir ver o mar.
Demoraram dois dias a fazer uma lista de tudo o que precisavam. Mas sozinhos não iam longe, por isso pediram ajuda ao Avô Joaquim, que acedeu entusiasmado.
Enfiaram-se no Fiat 126 do avô e meterem-se a caminho. A conversa depressa esmoreceu e acabaram por fazer a viagem em completo silêncio, com o coração a bater desenfreado à medida que se aproximavam.
Quando chegaram, começou a chover. Mas nem isso os impediu de sair do carro e, de mãos dadas, percorrerem os últimos kms que os separavam do mar. O avô ficou para trás, incentivando-os a continuar.
Só se ouvia a chuva a cair miudinha e um som de fundo estranho. Não, não era a chuva, pois esta era uma chuva de “molha parvos”. Parecia algo zangado que aparecia em vagas. À medida que se aproximavam o som ficou ensurdecedor.
O alcatrão rapidamente deu lugar a areia e descalçaram-se. A sensação de areia nos pés fez com que parassem e olhassem um para o outro.
Rita agachou-se e deixou que a areia escorregasse por entre os seus dedos. João imitou-a e levou um punhado de grãos à boca, saboreando o seu sal.
Ainda não conseguiam vê-lo, pois as dunas tapavam a visão, mas já sentiam a brisa húmida na face e o som cada vez mais alto, parecendo um rugido de leão.
Continuaram a andar de mãos dadas, os corações a bater em uníssono e passaram a última duna. Aí estava ele, na sua imensidão.
Estacaram sem respiração, perante tal imagem. O mar revolto rugia cada vez mais alto e as ondas, gigantes, abatiam-se na areia molhada, fazendo autênticas crateras no local onde pousavam.
Ficaram ali, parados, quietos, sem falar, a olhar o mar.
Finalmente tinham conseguido. Finalmente tinham visto o mar!
Olharam um para o outro e correram para junto da água. Correram, correram, correram até à beira mar.
“João, já vimos o mar!” – disse Rita sem fôlego.
“Sim… e agora vamos à lua, tá bem?”

Riscos e Rabiscos


Todos os anos ia até à beira mar e esperava encontrar-te.
Todos os anos, as férias serviam para me reencontrar.
E o mar ajudava os meus desígnios, os meus objectivos de pureza da alma, de ausência de conflitos interiores ou exteriores.
Nesses dias eu estava comigo mesma, com “os meus botões”, como dizia a minha avó.
Era nesta altura que eu colocava o dístico “Interdito” no meu pensamento, para evitar pensar nas pessoas que deixei, no trabalho que se vai acumular.
Não, estes dias eram só para mim.
E, tal como o mar, infinito para além do horizonte, a potencialidade de acontecimentos era real e gigantesca.
Tudo podia acontecer e eu estava aberta ao que desse e viesse.