It is what it is.

Num tempo de antes, ou desde que me recordo, luto contra mim. Luto para calar pensamentos negros e mágoas, para fazer melhor, para ser mais misericordiosa, paciente, sensata, solidária. Mesmo naquele instante silencioso, em que olho em frente e vejo primos e tios e amigos, alinhados nas cadeiras da capela, naquele dia único onde retomamos as raízes da família grande e dispersa, a única coisa que peço é para ser melhor, menos imperfeita, mais feita e talhada na cepa de quem me dá a mão.
Nesta luta contra o que sou, nesta guerra entre o que consigo e o que não alcanço fica a vida feita de dias bons e menos bons e retomo a meada: mais perfeita, menos egoísta, mais serena, mais companheira, melhor…

[sem título]

Escondi tanto tempo o que pensava ou sentia, domei tantas vezes as respostas e os gestos, escondi-me numa imensidão de dias e casas, que quando finalmente caí em mim, o meu corpo era terra desconhecida. Começaram então os dias dos olhares, frente ao espelho a estudar os traços desta desconhecida que me habita e que treina o sorriso e o gesto. Nesse ritual passo os dedos pelas linhas do tempo, pela clavícula que de angulosa parece irreal, toco devagar o cabelo curto e prendo-o atrás das orelhas onde espreita um brinco. Um único. Que reconheço. Brilha suavemente, discreto e só. E depois, no dedo, alinham-se os brilhantes da marca que me recorda que sou de algum sítio que já não quero. Dia, após dia, fecho a luz, recolho-me nesta embalagem perfumada que já não sou eu, mas não me deixa partir.

[crédito: Victoria Audouard “Alice’s mirror”]

Construímos-nos todos os dias, no que fazemos, no que somos, no que sentimos ou pensamos. O passar dos dias leva-me frequentemente para aquele cantinho onde guardo dúvidas e angústias “estarei a fazer bem?”, “é este o caminho?”, “o que quero?”… Tantas dúvidas para quem acreditava que passada a barreira dos 40 o caminho era empedrado a certezas. E hoje, neste labirinto que me habita, nestes longos monólogos calcorreados ao longo da avenida matinal, hoje, nem sei bem como ou porquê, recordei-me deste bocadinho de conversa trocada com alguém a quem respeito escrita e lucidez:

Acho que a pergunta mais difícil que tive de responder foi-me feita pela mais pequena na última viagem que fizemos as três. Íamos no carro a caminho do Alentejo e a mais pequena perguntou-me, do nada, “Deus existe?”. Acho que devo ter ficado uns segundos em silêncio e depois encontrei a resposta que no fundo resume exactamente o que penso: se associamos a ideia de Deus a algo de bom, então Deus existe em cada coisa boa que fazemos. Todos nós somos Deus, todos nós somos um bocadinho de Deus em cada palavra amável, em cada gesto de ajuda. A ideia de Deus só nos serve para alguma coisa se nos ajudar a ser todos os dias um bocadinho melhor.

Acho que pelo menos sobre este pedacinho fez-se luz.



Das certezas e outras dúvidas

Uma das coisas engraçadas que nos traz o avançar na vida são as certezas. Ou melhor, o desaparecer das certezas. Recordo agora o que me dizia a minha avó “o que é hoje, pode não ser amanhã”. E assim é. Mudei. Não no que sou no essencial, mas na análises que faço. Dou por mim a dar mais espaço à dúvida e à diferença. Acho que estou a deixar para trás o “preto-e-branco” e a começar ver a beleza e subtileza da paleta de cinzentos. Tantas certezas que tinha aos 20. Às vezes até gostava de lhes encontrar o rasto ou a memória, porque agora na década dos 40, assaltam-me tantas dúvidas…isto de crescer, ou envelhecer, ou melhor, isto de nos tornarmos grandes, só se percebe quando olhamos para trás e conseguimos ver o caminho que já fizemos.

Twilight Zone

Há momentos na vida, instantes, em que me sinto na twilight zone, e então esforço-me por me manter inteira e intacta, porque ninguém pode supôr que um comentário normal, tão simples, tão banal, tem para mim o peso de Hiroshima.
Pronto, é só isto.
Agora vou ali engolir mais uns comprimidos a  ver se passa.